Sobre memes, sexismos e erotismos (#NSFW)

04 jul
Por
Viktor Chagas
Professor e pesquisador da UFF.

Um espectro ronda a memesfera política brasileira, o espectro do antipetismo. Não é de hoje que sabemos que nem tudo na internet são flores. Se, nos últimos meses, os memes e as mídias sociais se tornaram vitrina para um novo reacionarismo, a febre dos blogs de política no país, que teve seu auge logo no princípio das investigações sobre o Mensalão petista, levantou fortes suspeitas de que a raiz da questão poderia repousar no meio (medium). Alguns analistas chegaram, na época, a içar a hipótese de que os blogs favoreciam a adoção de posturas conservadoras, na medida em que anonimizavam os interlocutores, e facilitavam, com isso, um comportamento descompromissado e arrogante, já que sem represálias ‐ ao menos enquanto ancorado no sentimento de “espectralidade" típico da internet. Judith Donath argumenta que, sem o anteparo da corporalidade física e sem nem mesmo a ancoragem dos nomes reais, o ambiente virtual é um ambiente em que as identidades são intencionalmente construídas. Este cenário libertário, capaz de se traduzir em relações equilibradas e paritárias entre os interagentes, é também, portanto, palco de dúvidas e incertezas. Como no cartum famoso de Peter Steiner, na internet, ninguém sabe se você é um cachorro.

Com a porta aberta para a livre expressão, e diante da facilidade em se desenvolver espaços privilegiados de opinião, eram comuns as formações de redes de blogueiros em apoio mútuo. Redes, condomínios, comunidades. Os laços eram de tal forma ideológicos, já naquela época, que, uma vez precipitado sobre um blog de direita, o internauta estaria invariavelmente cercado de links para seus correligionários. Um mapeamento realizado entre 2004 e 2006, por exemplo, chegou ao então extenso número de 120 blogs que tratavam de política no país, dos quais uma quantidade bastante razoável poderia ser identificada pelo epíteto, jamais auto-admitido, de “olavetes", os seguidores e entusiastas do articulista Olavo de Carvalho, autor de pérolas como o livro “Como não se tornar um idiota". Os olavetes são hoje uma instituição, uma espécie de tropa de choque da filosofia reacionária no país e têm muitas expressões, inclusive uma página de musas no Facebook. Há dez anos, porém, o fenômeno era perfeitamente consonante com os confrontos abertos nas seções de comentários dos blogs entre as facções rivais dos tucanalhas e dos petelhos ‐ que, mais tarde, viriam a ser batizados pelos adversários de petralhas, conforme neologismo repisado por outro de seus ídolos, o editorialista Reynaldo Azevedo.

Entre os comentaristas dos blogs surgiram então, pode-se dizer, os primeiros personagens da memesfera política brasileira. É bem verdade que os image macro ainda não eram comuns por aqui. Mas expressões e comportamentos ganhavam paulatinamente mais popularidade. Alguns comentaristas desenvolviam seus personagens através de suas formas de expressão. Nos blogs do jornal O Globo, por exemplo, “Pastor Milton" era um usuário que só comentava sobre política com referências a versículos da Bíblia. No Blog do Noblat, “Soube" era o nome de outro que se expressava sempre a partir de diálogos sobre os bastidores da política.

‐ Soube?
‐ Do quê?
‐ Da última bomba em Brasília! […]

O clima de animosidade entre os comentaristas era também similarmente próximo do que vivenciamos atualmente no cenário das novas mídias sociais. Mas o contexto de circulação dessas mensagens talvez deixasse margem de dúvida sobre uma eventual classificação dos personagens como memes. Afinal, “Soube", “Pastor Milton", ou “Nariz Gelado" (uma professora de História da UFPE, que em virtude de seus comentários ácidos no Blog do Noblat chegou inclusive a se transformar em verbete da Wikipédia por algum tempo) não foram alçados ao mesmo patamar de reconhecimento e reapropriação de uma “Dilma Bolada". Ainda assim, ali já se configurava a rivalidade histórica entre petistas e antipetistas, que culminaria hoje em importantes tensionamentos. Tensionamentos sobretudo ao estatuto do humor na memesfera brasileira.

Nem todos os memes são piadas. Alguns são peças sérias, que trazem dados e comparações amargas cuja estratégia retórica se fia em construir ações de militância. Outros, operam na linha tênue entre o humor e a propaganda política ‐ como equivalentes dos jingles eleitorais. Outros, ainda, incorporam o mais deletério “"humor negro"". E uma parcela não tão insignificante investe na ofensa de baixo calão e despropositada. Memes são muitas vezes não apenas conteúdos para maiores como para quem tem estômago.

A Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, na figura da titular da pasta, Eleonora Menicucci, deu entrada, no último dia 1º de julho, no Ministério Público Federal na Advocacia Geral da União e no Ministério da Justiça, em um pedido de investigação sobre a produção, divulgação e comercialização de adesivos para carros com a imagem da Presidenta da República. Os adesivos, alega a secretaria, são “lesivos aos direitos e garantias das mulheres e, em especial, da Presidenta". Tratam-se de montagens que utilizam o rosto de Dilma Rousseff sobre um corpo feminino, de pernas abertas, que servem, segundo os criadores, para serem afixados na entrada do tanque de gasolina dos automóveis. Com isso, a imagem proporciona a impressão de que as bombas de gasolina penetrarão sexualmente a personagem. É, segundo aqueles que o comercializam, uma peça de protesto contra os aumentos no preço do combustível. O aumento da gasolina foi de R$0,16 em maio último, com reajustes graduais nos meses anteriores.

A descrição do anunciante dizia “adesive seu carro e se divirta protestando". O adesivo custa R$34 no Mercado Livre, vendido por uma usuária que se identifica como Raísa Oliveira, e já havia sido encomendado por quatro interessados até o momento em que os administradores do site de leilões resolveram tirá-lo do ar.

O humor duvidoso, pendendo para o sexismo (ou, em outros casos, o racismo, a intolerância religiosa…) costuma colocar em xeque o papel social da piada. Os memes de internet são fartos em exemplos do tipo. O meme “nego", por exemplo, que se disseminou nas redes sociais online há alguns meses e foi notícia até em grandes jornais é um desses casos. E os partidarismos da política ajudam muito bem a exacerbá-los ou a atenuá-los. Nas últimas eleições, por exemplo, duas imagens chamaram a atenção entre as peças que circularam no Twitter pelo alto teor de agressividade que continham. Na primeira, Dilma, ela novamente, aparece em uma montagem que utiliza seu rosto e o corpo opulento de uma senhora de meia idade, nua, com os dizeres “quero f*der com você".

A imagem ganhou notoriedade especialmente entre correntes críticas ao projeto de governo do Partido dos Trabalhadores. Mas não chegou a ser repercutida em outros círculos, tampouco a figurar em veículos de mídia. É um retrato do tom virulento que o último período eleitoral alcançou. Os ataques imagéticos, porém, não se resumem ao antipetismo. Uma das falas de Levy Fidélix, então candidato do PRTB à presidência, no debate eleitoral da Rede Record, em setembro de 2014, gerou uma série de memes que reagiram aos seus ataques aos movimentos de direitos LGBTT.

Fidélix foi retratado com um ânus na boca, em referência à sua frase polêmica no debate ‐ segundo a qual “aparelho excretor não reproduz". Na ocasião, contudo, por se tratar de uma reação popular indignada, a peça teve uma recepção mais bem humorada, ainda que eventualmente contivesse elementos de difamação e injúria. E a distinção está, talvez, justamente aí ‐ no contexto em que a imagem é criada. O caso dos adesivos contra Dilma soam, mesmo aos desavisados, como agressão gratuita. Não apenas uma imagem misógina, sexista, pornográfica e que ofende à imagem pessoal da Presidenta e à instituição que ela representa, mas também e sobretudo uma imagem fora de contexto, que não foi motivada por nenhuma ação política anterior.

A imagem de Dilma no adesivo de protesto é, por esse prisma, tão meme quando a imagem de Fidélix que circulou no Twitter. E não é um meme por ter alcançado circulação nas mídias sociais apenas, mas por ser basicamente composto de uma sobreposição de imagens que recontextualizam a figura do político ante um dado acontecimento. Na literatura, a referência encontrada é à categoria nativa exploitable, um gênero de meme de internet em que um padrão imagético (um template) apresenta lacunas visuais e é sobreposto a outro, que o complementa. Nesta acepção, os personagens de Rage Comics ou o elemento de zoom nos macros de Tenso, assim como pequenos destacamentos como os Hipster Glasses ou o fundo aterrorizante do Turista da Morte são todos exemplos de exploitables, conforme a denominação das principais comunidades criadoras de memes na internet.

Os exploitables são um gênero de meme que frequentemente concentra a atenção do receptor em um aspecto particularizado da imagem: uma careta, uma pose excêntrica, um momento descontextualizado e ridicularizado. Aquilo que Débord talvez denominasse como um détour… Usados como recurso de quebra de expectativas da audiência ou piada situacional, eles reforçam uma vertente teórica contemporânea do humor que é descrita pela literatura como Teoria da Incongruência.

E não é privilégio nosso a troça com figuras públicas de alta proeminência. Nos Estados Unidos, por exemplo, os presidentes Obama e Bush figuram em inúmeros memes. A ex-primeira-dama Michelle Obama, também foi alvo, por vezes, de piadas sexistas.

Também os políticos da Hungria, da Alemanha, do México, e de tantas outras nações já chegaram a protagonizar peças caricaturais criadas por internautas, mais ou menos provocativas, mais ou menos agressivas. O Governo Putin chegou inclusive a banir memes políticos “preventivamente". Este tipo de humor não é novidade trazida pelos ventos da internet. Bastante lembrar das caricaturas altamente inflamadas em panfletos republicanos no século XIX, no Brasil. Tampouco o uso deste humor como ferramenta de protesto beira a inovação.

Memes só são memes em razão de seu contexto. Como fenômeno social, o humor só faz sentido quando pensado para o outro ou sobre o outro. Entretanto, justamente porque os grupos sociais são diversos, é bem possível que a mesma piada que causa ojeriza a um determinado conjunto de indivíduos, por suas referências implícitas, não seja contestada por outro. Os antipetistas, por exemplo, a esta altura, encontram-se certamente satisfeitos com a repercussão da campanha dos adesivos, e provavelmente veem a ação impetrada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres como censura. Isso porque a Teoria da Incongruência não é a única a explicar o humor. Para entender este episódio, é preciso recuperar também a chamada Teoria da Superioridade, tal como Sosa-Abella e Reyes a atribuem a Hobbes. A Teoria da Superioridade é baseada no princípio do humor como forma de ataque, e serve, seja a uma situação de manutenção da dominação, seja a uma reconfiguração das relações de poder baseadas em novas alianças.

A imagem de Levy Fidélix satiriza o político, quebrando a expectativa gerada em torno de seu discurso e traduzindo-o como tolice ou insensatez, e, de mais a mais, posicionando o “órgão excretor" [sic] inesperadamente à altura de sua boca. É uma reação, provocativa sem dúvida, mas distinta do ataque interposto à figura de Dilma Rousseff com os adesivos de carro, porquanto não mira o escárnio pelo escárnio; a chacota pela reafirmação de valores morais (duvidosos, é verdade!) do grupo socialmente dominante ‐ não confundir com o grupo político mandatário. Curiosamente, ao desenvolver sua sátira contra a personagem, a instituição e o sistema político, o meme de Dilma humaniza a Presidenta, torna-a mais próxima do cidadão comum, e por isso, em sua condição, passível de inspirar simpatia. É como fazer piada com uma tragédia pessoal, como a morte do filho do Governador Geraldo Alckmin ou do ex-presidenciável Eduardo Campos.

Há limites para o espectro do antipetismo? Difícil dizer, mas certamente as balizas do humor estão próximas de serem traspassadas. Diferentemente do que ocorre com o meme de Fidélix, o humor na imagem de Dilma ofende porque não desloca sentidos; ao contrário, ele os reafirma, e, ao fazê-lo, oprime, gera desconforto em seu alvo, sua vítima, e em todos aqueles que passam a se identificar com ela. Mas quem foi mesmo que disse que memes são conteúdo frívolo e sempre engraçado?

Referências

Donath, Judith. Identity and deception in the virtual community. In: Smith, Marc & Kollock, Peter. Communities in Cyberspace.

Sosa-Abella, Mireya & Reyes, Ricardo M. Political humor in comic strips: a comparative analysis between Oriental and Occidental approaches. In: International Journal of Cultural Studies 18(2), 2015.

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